quinta-feira, 19 de maio de 2016

Cara de 30, corpinho de 87

Check!

Quem me conhece sabe que minha saude é algo mais instavel que a lealdade do Temer. Tenho longos relatos nesse blog sobre minhas passagens por hospitais lioneses. Reconheço cada um pelo cheirinho do banheiro. Fiz uma cesareana pra retirada de um tumor em 2012. Em 2013, fui operada do coraçao. Recentemente, descobri que meus joelhos tem uma pequena ma-formaçao, o que faz com que as rotulas escolham qual caminho seguir quando dobro os joelhos. Por isso, semanalmente, faço uma sessao de fisioterapia. Em sete anos de Lyon, dei entrada no Hôpital Femme Mère Enfant (ala endocronologica e ala cardiaca), no Edouard Herriot, no Hospital Militar e, recentemente, no Saint Joseph Saint Luc. Esse recentemente guarda a historia de hoje. 

Ha duas semanas, eu estava de bouas no meu quarto tentando me lembrar no Netflix do ultimo episodio de HIMYM assistido. Faz uns dois anos que eu tento terminar essa série. Eu tou na segunda temporada. Tem muita coisa na vida pra se ver, minha gente. E o Netflix nao veio ao mundo pra trazer paz de espirito à gente indecisa e sem foco. Eu sou de gêmeos. Gê-me-os. A gente sai de casa pra comprar pao e volta inscrita na faculdade de musica. Com um sorvete na mao. Mas a questao é que eu comecei a sentir uma dor no peito. Assim, tao de repente. E a dor foi aumentando, aquele aperto no coraçao. Nao era uma dor de pressentimento porque lembrei que meus filhos nao estavam viajando de carro e que meu marido nao estava na guerra. Lembrei ainda que eu nao tenho filhos. "Meu deus, por que essa dor? Seria amor?" 

Nao era.

Entao, me apoiei na mesa e comecei a chamar pelo nome da minha esposa Gertrudes, porque essa se parecia, em muito, com uma dor que somente uma pessoa com uma esposa de nome Gertrudes tem. Mas ninguém respondeu ao meu chamado. Ainda bem, diga-se de passagem. 

A dor foi tao abrupta, que pensei que poderiam estar fazendo vudu comigo. Mas, como sabiamente disse o Pica-Pau, "vudu é pra jacu". Qualquer que fosse a origem, o importante é que, quando eu me debruçava, doia. Quando eu respirava, doia. Foi aih que descobri que meu recorde em apneia, num momento de desespero, é de quinze segundos. Imaginando que praticar apneia nao iria necessariamente ajudar, tomei um paracetamol. Acho que se eu tivesse comido um amendoim, eu teria tido o mesmo alivio. Foi entao que decidi fazer minha visita anual ao hospital. 

Minha coloc foi comigo. Enquanto eu era atendida por um enfermeiro, ela fazia minha ficha na recepçao. Perguntaram a ela o que eu fazia na França, porque eu me mudei, se eu estava legal no paihs. Vocês sabem, essas informaçoes super uteis pra quem esta dando entrada num hospital. Eles alegaram que as perguntas eram necessarias para saber se ela me conhecia bem. Sério? "Nao, querida, ela me achou na rua, me deu um golpe de clava e me arrastou pro hospital".

E aih começou aquele procedimento de praxe: questoes sobre o historico de saude familiar. Meus pais tem problemas cardiacos? Na familia temos problemas de pressao alta? Eu sei que o intuito é de guiar um pouco os medicos, mas eu tenho trauma de diagnosticos equivocados. Como por exemplo, da medica que me receitou vitaminas quando eu disse que estava perdendo os cabelos devido ao tumor. Entao, pra que eles nao se baseiem em uma pista falsa, respondo 

- Adotados. Todos. 
- Seus pais sao adotados?
- Todo mundo. Meu pais e os pais dos meus pais antes deles. E os pais dos pais dos meus pais antes deles também. Ninguém sabe de historico familiar, é uma coisa louco, doutor. Qualquer um pode ter uma doença hereditaria. Ou nao. Acho que até eu sou adotada. E quem sabe eu sou sua filha. Pai, me cura.

Assim, ele teve que fazer radiografias dos meus pulmoes de baixa capacidade apineica e um exame de sangue completo. Enquanto isso, eu tava tao branca que estava desaparecendo aos poucos na maca. Quando a enfermeira voltou, soh tinha a pulseirinha com meu nome em cima do lençol. Mas ela me encontrou e começou com outra sessão de perguntas:

- De zero a dez, qual a intensidade da sua dor?
- Sei la, oito. 
- Oito?! Mas entao é uma dor quase insuportavel!
- Ah nao, pera, moça! Seis entao.
- Seis?! Mas entao nao é tao forte assim.
- Nao, ah meu deus! Seis e meio? Seis ponto oito? Sete?

Eu morrendo aos poucos e a mulher querendo que eu desse conta de dar nota pra dor.  

- Olha, eu nao sei. Quando eu nao respiro, a dor é seis. Mas quando eu respiro é oito e, quando eu respiro profundamente, é nove. Entao, como eu nao posso parar de respirar...
- Claro, né!
- Mingula! Claro o que? Fale direito que eu tenho o coraçao que poderia ser o da sua avoh!

Eu passei a noite dando nota pra essa dor. So que eu estagnei no sete. A dor ja estava mais suportavel e eu podia até bocejar, vejam soh que sorte a minha, mas eu tive medo que eles me mandassem pra casa ainda com dor, entao fiquei la por mais algum tempo, até eles descobrirem o que eu tinha. 


um figo com pericardite
La pras 3h da manha, o médico do hospital trouxe o veredicto: pericardite. Isto nada mais é que uma inflamaçao na membrana que envolve o coraçao. Três meses de tratamento, um mês longe do trabalho e repouso absoluto sob risco da coisa voltar. 

Uma semana depois, fui consultar um cardiologista pra fazer um electrocardiograma. 

- Por que você estah aqui?
- Eu tive uma pericardite.
- Sua familia tem historico de problemas cardiacos?
- A sua tem?
- A minha? Tem.
- Papai?


::

E pra quem é de feici:

.caso.me.esqueçam.

quarta-feira, 23 de março de 2016

Morcegos à abejas

Voltandos às origens

Quem segue o blog desde 2009 merece um biscoito sabe que eu morava com dez pessoas numa casa em Lyon. Bom, esse numero variou muito com o passar dos anos: as vezes eramos oito, mas ja chegamos a ser treze. Eh de se imaginar que as coisas nem sempre eram faceis. Tinha sempre algum mala que raramente ajudava nas tarefas domesticas, mas pelo fato de sermos numerosos, a faxina acabava sendo feita por algum guerreiro ou guerreira. Se duas pessoas estavam com preguiça de cozinhar, o jantar acabava na mesa do mesmo jeito pelas maos de duas ou três mais dispostas. Confesso que, no começo, eu achava que seria dificil morar com dez pessoas, mas dificuldade mesmo eu senti na hora de mudar de casa e... morar com somente duas.

Meus leitores queridos, volta e meia vocês me perguntam "Luci, transar no chuveiro engravida?" ou ainda, "Luci, o que é um-a coloc?" Nesse post, vou responder à segunda pergunta, que ta dentro do  tema, ta? Entao, quando você vira adulto, ou rico, o que vier primeiro, e sai da casa dos seus pais, você pode dividir seu teto com alguém, certo? Pois "coloc" nada mais é do que a versao francesa do roommate, ou ainda a forma de moradia. Exemplo: "eu moro numa coloc. Eu tenho dois colocs". A pessoa do coloc, claro, pode vir em varias versões. Versão segunda-mae, versão gota-serena (que de serena soh tem a gota), versao velha-louca-dos-gatos, versao apendicite-inflamada etc. Atualmente, eu moro com esta ultima.

"Luci, o jantar ta pronto"
Eu me mudei dessa casa supra-citada em 2014 e fui parar no centro da cidade, num apartamento, no bairro da Guillotière. Vocês lembram desse bairro, né. nao lembram O meu apartamento atual é bem escuro, parece uma caverna. Quando fui visita-lo, com uma lanterna na mao, me deparei com lindas pinturas rupestres e centenas de milhares de morcegos. Eu tenho medo de morcego (eu ia fazer uma piada com o Batman, mas nao achei nenhuma, podem ficar tranquilos) mas eu prefiro olhar pelo lado positivo: graças à troca cultural, minha audiçao ficou mais apurada desde que me mudei e passei a me deslocar usando ecolocalizaçao. Eh maravilhoso.

No comeco de 2015, eu fui pro Brasil. Nessa mesma época, eu morava na caverna com um cara que ja tinha morado comigo na outra casa. Mas precisavamos escolher uma terceira pessoa para baratear o aluguel (percebe-se que eu nao sai da casa dos meus pais porque fiquei rica). Eu estava super empolgada com a viagem porque ja fazia dois anos e meio que eu nao pisava no Brasil, entao releguei a segundo plano a escolha do nosso futuro coloc. Ledo engano. Meu coloc e eu acabamos escolhendo, sem muita reflexao, um carinha que parece, e muito, com o personagem abaixo: 




Sim, o principe do Shrek. A unica diferença é que meu novo coloc tem queixo duplo. Da pra colocar uma folha A4 no meio do queixo dele. Eh uma pena que manter uma folha de papel no queixo de alguém nao seja bem algo de grande proveito. A principio, Principe era legal. Mas nao demorei muito pra sacar que eu estava morando com uma pessoa perturbada. Ja nos primeiros dias de convívio, ele me mandou um sms super grosseiro. Eu fiquei tao indignada com a afronta que contratei um franco-atirador pra dar cabo dele naquele dia. Mas ao chegar em casa, ele me recebeu com uma cerveja e perguntou como tinha sido meu dia, como se nada tivesse acontecido. Com os olhos semi-cerrados, estudei a situacao em silêncio, acariciando a barbicha inexistente. "Hmm… Este principe é perigoso. Conhece meus pontos fracos. Preciso usar de muita perspicacia e cautela para derrota-lo" e sai pelo apartamento gritando de braços abertos enquanto emitia meu sonar.

Mas ele tinha manias que eu odiava!

1 - O cara usava todo o espaço do congelador com garrafas pet vazias. Sim, a pessoa abria o congelador pra procurar um gelin e se deparava com um monte de garrafas de plastico!

- Cara, tu sabe que tu colocou garrafas vazias no congelador?
- Sei.
- ...
- ...
- Tu... pode explicar por que?
- Pra que nenhum fungo se desenvolva na boca delas quando eu for usa-las.

Eu sempre tive vontade de enfiar aquelas garrafas congeladas no reto dele. Ao invés disso, mergulhei o gargalo das garrafas no sanitário e coloquei de volta no congelador. Mentira, meu eu-nove-anos-de-idade quis fazê-lo, mas para o bem da (minha) humanidade, eu reprimo alguns seres que habitam em mim. Alguns.

2 - Antes mesmo da gente se conhecer, ele namorou por um tempo uma argentina que morava na França. Eles foram passar as férias na cidade natal dela e ele voltou mais argentino que o pai da menina e, durante todo o ano em que moramos juntos, tive que aguentar:

- Luci, como se diz "abelha" em português?
- Abelha.
- Nossa, como em espanhol! "Abeja"!
- Nossa.

- Luci, como se diz "passaro" em português...?
- Pass...
- …porque em espanhol se diz "pajaro". :D
- ...

Outro dia, segurando uma cuia com chimarrao: "os argentinos tomam chimarrao. No sul do Brasil também se toma chimarrão. Você sabia disso?" E você sabia que la na Paraíba a gente passa a pexêra em francês metido?

3 - Ele praticamente nao fazia faxina. Tenho que dizer que, em um ano, eu nunca o vi lavar o banheiro, nem o chuveiro, nem passar pano na casa, nem espanar! "Nossa, Luci, o que ele fazia entao?" Raiva! Muita raiva! Ele deixava tanta comida no ralo da pia que eu ficava imaginando se ele tinha conseguido comer alguma coisa. O fogão meu deus tinha uma amostra de cada coisa que ele havia cozinhado durante o dia. Eu ainda tou pensando numa piada com o Batman. Amavelmente, com os olhos flamejando e labaredas de fogo saindo pelos ouvidos, fui explica-lo que a faxina deveria ser feita igualmente pelos três colocs e que eu nao pedia que ele fizesse nada mais ~complexo~, como limpar o sugador do fogao, mas soh o basico mesmo.

- Mas até o sugador do fogao eu ja limpei!
- Quando?!
- Em janeiro.
- Cara... a gente ta em dezembro.

4 - A maioria das pessoas aqui me chama de Lucie. Meus amigos íntimos me chamam de Lulu. Meus amigos e ele. Um dia, enquanto discutíamos, ele decidiu me atingir e me chamou de... Luciana. "Lu-ci-a-na, quando é que você vai embora, Lu-ci-a-na?" Quando a briga acabou, ele voltou a me chamar de Lulu. Mas foi bastante estranho ver alguém tentando me atacar me chamando pelo meu próprio nome. Sua… sua espécie de LUCIANA!

5 - Principe gosta de ser aquele cara meio resolve-tudo, que TEM de ser reconhecido pelo trabalho que fez. Mais do que gostar de ajudar, ele gosta que as pessoas precisem dele. Quando eu comentei com um morcego que o pneu da bike nao funcionava, Principe, do alto do seu cavalo branco, disse "calma, eu vou te ajudar". Broder, eu nao preciso da sua ajuda, mas no dia em que eu tiver uma folha de papel precisando ser colocada num queixo, eu te solicito.

Mas as nossas tensões vinham principalmente do fato dele achar que os objetos que pertenciam a ele  fossem uma extensão dele próprio, como fazem certos caras com seus carros. Entao, criticas negativas deveriam ser evitadas para o bem da caverna.

Um dia, Principe trouxe um aspirador de po la pra casa. Mas nao qualquer aspirador de po. Ele trouxe o primeiro aspirador de po fabricado na Europa. Na verdade o trambolho era tao esquisito que eu fiquei em duvida se ele vinha do passado ou do futuro. Ele tem o meu peso e funciona muito mal. Sinceramente, se eu ficasse de quatro e aspirasse o chao com a boca (nao imaginem essa cena), eu teria tido um resultado melhor que aquele oferecido por esse aspirador de po. Um dia, um rapaz que ja tinha sido coloc de Principe num passado distante, deu de cara com o aspirador na nossa sala, sendo puxado por quatro cavalos, e disse "nossa, esse aspirador ainda existe?" Existe. Existe e ao invés de aspirar ele tosse.

Pronto, sentiram a vibe do aspirador, ne? Eu tive que fazer essa introdução para que voces entendessem a suscetibilidade do meu coloc. A proprietaria do apartamento, sensibilizada pela minha dificuldade em fazer a faxina com o trambolho, me disse que ela tinha um aspirador em desuso e queria saber se nohs estariamos interessados.

- O fio tem mais de um metro de comprimento?
- Claro.
- Quero.

E assim foi. Entao, eu comentei com ele a proposta da proprietaria, mas parecia que eu tinha dito que ela queria um dos testiculos dele no lugar do aluguel.

- O que?! Por que?!
- Nao sei, porque o aspirador dela deve ser mais moderno.
- Se é assim, eu vou guardar o meu aspirador.
- Ta bom.
- Vou guardar ele no meu quarto!
- Bom, nao precisa, mas se você quiser, tudo bem.
- Nao! Eu vou guardar sim!
- ...
- Ninguém quer o meu aspirador...
- ...
- Mas quando nao tinha nenhum aspirador, vocês bem que usavam ele, nao é?

Eu nao ouvi o resto, porque eu dei um tiro na minha cabeça. Um mês depois, Principe se mudou. Ouvi dizer que ele foi pra outra cidade.


Agora somos três meninas. Sera emocionante quando estivermos todas menstruando ao mesmo tempo. Mas sinceramente, eu nao sou a unica a morar com gente esquisita. Gaspar morava com um garotinho cheio de acido meio bipolar. Ou o cara tava feliz e fazendo o bem sem olhar a quem, ou tava xingando e quebrando a casa (geminianos!). Na véspera do dia em que ele deixou a coloc, ele gritou com todos, disse que o mundo tava contra ele, queimou uma cédula de 100 euros (sim), chorou nos bracos de Gaspar e depois foi pro quarto. No outro dia, ele foi embora sem avisar e ninguém nunca mais o viu. Que saudade dos meus dez!


Para incentivos, pitacos e atualizacoes:
Caso.me.esquecam - Facebook





segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

Tempestade numa panela d'agua

No começo do ano passado, eu tava me recuperando de uma desilusao amorosa, de um idiota que fez cocô no meu coraçao. Num fim de semana de amargura, decidi ir pra festa de um amiguinho. La, encontrei um cara que tinha um rolo de papel higiênico. Ele limpou todo o cocô do meu coraçao e, desde entao, tamo junto. 

Essa eh minha introducao.

Ele eh bem bonitinho, o bichinho, bem loiro. Muito loiro. Na verdade, ele é tao loiro, que quando a gente ta meio longe, a gente pensa que ele nao tem sobrancelha, mas ele tem logo duas. E os cilios dele sao transparentes. Quando eu chamo ele de Gasparzinho, ele aprecia médio. Mas ele nao sabe falar português, entao ta tudo serto (meu amor, se um dia você aprender português e ler isso, "serto" nao se escreve assim, ta? Eh com dois "S". Oin, também te amo). 

"Luci de namorado novo... Manda nude". Mando nao, pessoas. Mas eu vou contar uma historia, ta, que é melhor que nudes*. Eu tenho uma maldiçao coisa com namorados desastrados. Quem acampanhou o blog na época, sabe que meu ex ja tentou me esganar enquanto dormia, quebrou minha bicicleta e metade do mobiliario da casa em que a gente morava e tudo isso sem querer. Camilo, se você ainda falar português… bom, desculpaê, mano! Entao, Camilo quebrava tudo, mas a façanha de provocar uma enchente no quarto foi obra de Gaspar (agora que eu tou pensando que esganar a namorada enquanto ela dorme nao é a perfeita descriçao de uma pessoa desastrada, mas deixa pra la).

*nem eh

Eu comecei a desconfiar que Gaspar era desastrado quando ele chegou um dia em casa falando do trabalho: "hoje eu me dei um murro na cara". Eh, a historia começou assim. "Eu fui tentar tirar um saco de areia do carro, mas ele tava muito pesado! Dai, enquanto eu fazia força pra puxa-lo, minha mao escorregou e eu me dei um murro na cara". O cara por pouco nao se neutralizou sozinho. High level  de mao-esquerdice: lutar MMA com um saco de areia. E perder.

Mas desastre mesmo, eu vi no final do ano passado. Quando o inverno chega por aqui, a gente tem que retirar o ar que ficou acumulado nos aquecedores. Isso otimiza o funcionamento do aparelho. A tarefa consiste em girar levemente uma peça do aquecedor, fazendo com que o ar saia, geralmente com um pouco de agua junto. Assim que o ar sai, fecha-se a valvula outra vez. A açao dura cinco segundos. Mas para o sucesso da operaçao, é preciso ter à mao uma bacia pequena e uma chave francesa. Pode ser uma chave inglesa tambem, mas desde a Guerra dos Cem anos, as chaves inglesas nao funcionam muito bem na Franca. O senhorzinho da foto, por exemplo, muito discreto no seu modus operandi, executou o serviço com um copinho de café e uma chave de fenda. Eu, por via das duvidas, menos por temor que por exagero, realizo a açao com um tonel que cabe a familia dentro (vale salientar que minha voh pariu bastante nos anos 50). O recipiente se faz necessario porque a pressao dentro do aquecedor é muito forte e as vezes o ar liberado sai, como eu disse, com um pouco de agua.

No comeco do inverno, Gaspar chegou do trabalho meio derrubado e resmungando. Pensei que ele tivesse pego uma briga com outro saco de areia, entao nao fiz comentarios. Ele falou que tinha tido um dia ruim, mas nao entrou em detalhes. Ele disse somente que iria tirar o ar do aquecedor e que logo me daria antençao. Entao, la estava eu lendo um livro na cama sobre o Coliseu, deitada de barriga, as perninha balançando. Inclusive, voces sabiam que o nivel da arquibancada mais distante da arena do Coliseu era reservado aos pobres, aos escravos e as mulheres? Pois eh, esse blog eh um oceano de cultura. Falando nisso...

Enquanto apreciava minha leitura, eu ouvi, de repente, gritos de pessoas no quarto e buzinas de carros. Levantei o rosto e vi familias inteiras correndo na mesma direcao, fugindo de uma onda gigante que chegava à toda velocidade. Eu so tive tempo de salvar o Coliseu. Tinha um geiser descontrolado saindo do aquecedor: Gaspar tinha aberto tanto a valvula do aquecedor, que a pressao a jogou dentro da panela que ele inocentemente segurava e a agua da cidade foi sendo jorrada aos litros dentro daquele quarto. Eu presenciei um fenomeno raro, uma especie de chuva indoor, a primeira observada na França. Felizmente, eu reagi rapidamente para ajuda-lo:



Apos passar 20 segundos dando voltas em torno de mim mesma, corri pra fechar o registro da agua. Sai do quarto correndo, desci dez lances de escada num pulo, entao lembrei que eu nao sabia onde era o registro geral e voltei pro quarto. Vi o dedinho loiro da criatura enfiado no aquecedor, tentando conter a agua, em vao. Tive pena, mas quis rir. Ou foi o contrario. Perguntei a Gaspar onde era o danado do registro, mas fazia somente um mes que ele morava la e ele sabia tanto quanto eu. Ele pediu pra eu acordar o coloc dele que dormia no andar de baixo.

Desci de novo as escadas e bati descontroladamente a porta. Quando o cara abriu, ele tinha um olho fechado e o outro meio aberto, mas a situacao exigia uma açao rapida, entao fui sucinta na explicaçao.

- Gasparaquecedorcoliseuenchenteregistro! Onde eh que eh o registro?
- O registro de que?
- O de agua! Tem uma enchente!
(ele abriu um olho)
- Nao sei. Por que?
- Gaspar quebrou o aquecedor!
- An? Como assim?
- Ai, meu deus!

Olhe, eu ja estava esbaforida, imaginando encontrar meu namorado azul, boiando afogado no quarto, entao pedi pra ele subir, mas ele foi na velocidade turista-visitando-igreja e eu la, incentivando ele com os olhos arregalados. Chegando la, juro, tinha agua na parede, no teto, debaixo da cama, meias molhadjinhas e o tapete encharcado. Mas felizmente, Gaspar tinha conseguido lutar contra a pressao da agua e recolocado a valvula no lugar. E o melhor de tudo, ele continuava transparente e nao azul. Depois de secar o quarto (e o computador e os livros e as roupas), encontramos a panela. E uma chave inglesa.





Talvez

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