Finalmente voltamos de viagem. E, apesar da preguiça monstruosa de escrever sobre o que se passou, vou faze-lo pra evitar que certas lembranças se percam. Lembrando que eu nao sou guia de viagem e, apesar da minha intençao em dar informaçoes sobre as cidades visitadas, a escrita vai girar em torno do obvio: minhas impressoes sobre os lugares e pessoas. Afinal, informacao pratica sobre a cidade, você encontra na internet.
Berlim (12 a 20 de agosto):
Chegamos tarde da noite na cidade e fomos recepcionados por um amigo de Camilo, Nico, que iria hospedar a gente durante toda nossa estadia na cidade. Assim que colocamos as mochilas no chao da sala dele, veio o convite que eu adoro: vamos tomar uma cerveja?
Macaco gosta de banana?
Chegamos à calçada, entramos por uma porta que ficava justo ao lado do prédio, descemos uma escada, seguimos por um corredor e encontramos um bar, assim mesmo, bem escondido. O cara mais discreto do bar tinha uma cartola vermelha na cabeça. As pessoas estavam todas loucas e bêbadas. E cagou quem pensou que isso é obvio, ja que bar é lugar de bêbado: na França ninguém fica bêbado em bar, a nao ser que seja rico (250ml de cerveja a 2,50€, oi?). Portanto, ponto pra Berlim que tem cerveja barata.
A "decoraçao" do bar consistia em um guarda-chuva aberto em cima de uma geladeira, uma garrafa de Pitu (sério!) sobre uma mesa e uma luminaria brega no balcao. Com certo espanto, vi que o tabaco era liberado no pequeno espaço fechado, porque na França... nao é.
Com tanta gritaria, confesso que fiquei um pouco intimidada naquele lugar. Entao, quis logo saber o que Nico poderia dizer sobre Berlim e seu povo. Ele disse que la, as pessoas tem mais liberdade pra fazer o que querem. Se você quiser deixar o seu comércio aberto até as 5h da manha, você pode. Se quiser fumar em lugar fechado, você fuma (com excecao de alguns restaurantes). E que esses tipos de concessoes, ao contrario do que as pessoas pensam, sao utilizados com bastante consciência pelo povo. Na França, por exemplo, nao se pode beber no meio da rua. Em Berlim, apesar do alcool ser liberado, bom e barato, os niveis de violência nao sao grandes e Nico chegou mesmo a dizer que nao lembra de ter visto nenhuma briga durante os seus anos em Berlim. Disse que o povo era muito tranquilo, de paz. A tomar pela Historia, seria um pouco dificil crer nisso. Ainda bem que eu tive a oportunidade de ver com meus proprios olhos o quanto tudo isso é verdade. Duas vezes felizarda.
No dia seguinte, fomos a um mercado turco. Ele era gigante em comprimento, mas pequeno na largura, mas satisfez meu maior desejo de consumo até entao: a compra de um milho. Nao, eu nao sou tao humilde assim. Eh que vocês nao entendem: eu poderia passar o resto da vida me alimentando de frango, milho e batata. Entao, encontrar um milho amarelinho, quentinho e suculento, depois de um ano sem comer nenhum, por um misero euro, me fez muito feliz. Andamos todo o mercado impressionados por nao termos recebido nenhum empurrao ou ter visto gente bufando com a velocidade da marcha.
No final do mercado, uma movimentacao estranha: era o povo - adulto, velho e criança - que tinha parado pra ver uma banda de swing. Outra grande delicia desse dia. A banda era tao competente, apesar do jeito mambembe, que fomos ve-la outra vez na noite do mesmo dia num bar.

Alguns souvenirs da cidade, como camisas e canecas, tem o famoso "I ♥ NY" inscrito, onde o "NY" é coberto pelo nome "Berlim" pichado. A brincadeira tem explicaçao simples: a quantidade de pichaçao nos muros da cidade salta à vista. As paredes, as placas, as latas de lixo, o chao: quase tudo é recoberto de pichaçao, arte de rua. Em outro momento (nos tempo no Brasil), eu nem teria notado isso, mas em Lyon uma pichaçao nao dura muito tempo nas paredes. Outro dia, o grande NIQUE LES FLICS ("fodam-se os policiais") escrito numa esquina daqui durou uma semaninha, mas por la, parece que é estilo de vida:
Outra coisa que me impressionou na cidade foi a qualidade dos seus museus. O primeiro que visitamos foi o Museu da Historia de Berlim, super criativo, organizado e interativo. Dava pra sentir como era viver em cada época retratada, nada daquelas leituras maçantes tipicas dos museus. Otima atividade pras escolas fazerem com seus alunos e os pais, com seus filhos.
O museu começa retratando as três principais religioes existentes na cidade: judaismo, islamismo e cristianismo. Para isso, havia um armario com três colunas de gavetas (uma para cada religiao), que, ao serem abertas, mostravam objetos e simbolos referentes a cada tema ligados aos seus costumes - uma gaveta pro nascimento, outra pra morte, pros hinos, pros livros sagrados, pros lideres espirituais etc.
Pra representar a Primeira Guerra, nada mais eficaz que um cemitério e videos sobre o assunto. Nos anos 20, época de grande desenvolvimento econômico, réplicas gigantes de maquinas fotograficas, carros e um pequeno cinema instalado onde trechos de filmes alemaes eram exibidos. A sala que eu mais gostei foi uma que representava a louca vida industrial: sala escura com caixas de som reproduzindo o barulho das maquinas. Ao chegar perto das maquinas em exposiçao, o chao tremia, fazendo o visitante sentir como era o desconforto e a vida estafante dentro das industrias berlinenses.
Maquinas
A proposta inicial era imitar um trabalhador batendo ponto,
morto de sono. Mas saiu uma coisa meio... débil mental. Falhei.

Fotos de celebridades alemas. A medida em que iamos
descendo as escadas,onde as fotos estavam instaladas,
certas pessoas iam sumindo,tendo suas fotos substituidas por um
papel onde se lia "morto", "desaparecido" ou "preso".
Na época da Guerra Fria, a representaçao de uma tipica sala
de estar do ladooeste do Muro com sua TV à cores,
seu radio e seus moveis "modernos".
Do lado leste, o modesto

Ambas as salas divididas pela ameaça de uma guerra nuclear
E por falar nisso... O melhor foi realmente a visita a um abrigo nuclear que fica a alguns metros do Museu (cuja visita guiada é gratuita). O bunker foi construido em 1974 e tinha capacidade pra abrigar 3000 pessoas. Mas aih vem os problemas: o abrigo, na verdade, era um estacionamento e, caso houvesse um ataque nuclear, levaria-se pelo menos uma semana pra retirada completa dos carros e mais uma segunda semana pra organizar a provisao de comida. Algo me diz que, depois de duas semanas expostas aos efeitos de um ataque nuclear, as pessoas nao iam precisar de um abrigo. Mas acreditava-se que bastava um banho pra que a pessoa contaminada pudesse se juntar à gente saudavel que, por ventura, ja se encontraria no bunker.
Dormitorios
Cozinha
E os problemas continuam:
- Caso as camas estivessem armadas, nao haveria espaço pra caminhar dentro do abrigo;
- O gerador de eletricidade tinha capacidade pra funcionar apenas durante uma semana;
- O fim da eletricidade impossibilitaria o funcionamento do sistema de troca de ar com o exterior e, como a humidade no bunker chegava a 90%, as doenças se propagariam rapidamente;
- O unico espaço reservado pra que os doentes ficassem separados das pessoas saudaveis era na sala onde se planejou colocar os (provaveis) mortos.
- A comida duraria em torno de uma semana;
- Caso houvesse mesmo uma bomba, ela nao poderia cair proximo ao abrigo e ainda deveria ter o impacto inferior ou igual ao de uma bomba antiga, como a de Hiroshima - o que eu duvido muito que seria o caso. Somente assim poderia-se esperar por sobreviventes
Viva a privacidade
`A parte de tudo isso, eu penso no terror psicologico pelo qual iam, inevitavelmente, sofrer essas pessoas. Provavelmente, elas iam surtar antes mesmo que as provisoes de comida e a eletricidade acabassem, afinal, imagine você ter que viver, cotidianamente, diante da ameaça constante de uma guerra nuclear e depois, ter que dividir um espaço abafado e escuro com 3000 desconhecidos, por sabe-se la quanto tempo, onde o maximo de atividade seria dormir (sem nenhum conforto ou tranquilidade) e ouvir o tempo todo sobre os medos alheios. Nao pude deixar de lembrar de "Ensaio sobre a cegueira".
Essas maletas penduradas sao a representacao de uma historia que as maes contavam pra acalmarem seus filhos. Na epoca, elas diziam que, caso houvesse um ataque nuclear, bastava que as crianças colocassem suas maletas sobre suas cabeças que elas estariam protegidas.
Ainda no Museu, o labirinto pelo qual vai seguindo o visitante, passa por reproduçoes de ruinas da cidade à época da Segunda Guerra e videos reais dos sobreviventes andando pelos escombros. Eh de passar mal. A visita segue mostrando a diferença entre as duas Berlins divididas pelo famigerado muro. E como a visita termina? Desembocando propositalmente numa superloja de souvenirs, onde soh ha espaço pra uma coisa: o consumo.
Endereço: Kurfürstendamm, 207-208
Horario: Aberto diariamente das 10-20h (ultima entrada às 18h)